Pedido de vista suspende julgamento sobre suposto crime de submissão a trabalho escravo
Pedido de vista do ministro Gilmar Mendes interrompeu, nesta quinta-feira (07), o julgamento, pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), de denúncia formulada pelo procurador-geral da República contra o senador João Batista de Jesus Ribeiro (PR-TO). A acusação aponta suposta prática de aliciamento fraudulento de trabalhadores (artigo 207, parágrafo 1º, do Código Penal – CP) em Araguaína (TO), para trabalharem na Fazenda Ouro Verde, de propriedade do senador, no município de Piçarra (PA).
A denúncia envolve, também, os delitos de frustração de direito assegurado pela legislação trabalhista (artigo 203 do CP) e redução de trabalhador à condição análoga à de escravo (artigo 149 do CP), ambos com a incidência da causa de aumento de pena prevista para a contratação de menor ( §2º dos artigos) .
Formulada no Inquérito (INQ) 2131, a denúncia resultou de inspeção feita em fevereiro de 2004 na propriedade rural do senador por um grupo móvel de auditores-fiscais do Ministério do Trabalho, após recebimento de informações de um trabalhador à Comissão de Pastoral da Terra (CPT) de Araguaína (TO) sobre suposto trabalho escravo.
A denúncia envolve também o suposto administrador da fazenda, Osvaldo Brito Filho, apontado por uma série de trabalhadores como a pessoa que supostamente os contratou em Araguaína mediante promessas salariais e uma antecipação de R$ 100,00 e os levou em vans ou ônibus fretados ao local da fazenda, no Pará.
Na inspeção realizada na fazenda Ouro Verde, o grupo móvel do Ministério do Trabalho, acompanhado de um grupo de policiais federais, encontrou 35 trabalhadores em condições subumanas de trabalho e acomodação, além de falta de assistência médica, ausência de assinatura da Carteira de Trabalho e de recolhimento das respectivas contribuições previdenciárias.
Segundo consta ainda dos autos, o relatório do grupo móvel dá conta, também, de que os trabalhadores, entre eles um menor, foram contratados para trabalhar em jornadas excessivas, das 6 às 18 horas de segunda a sábado e das 6 às 12, aos domingos. Além disso, eles dormiam em ranchos cobertos com folhas de palmeiras, abertos em suas laterais, sendo que um deles foi montado sobre um lugar úmido e insalubre.
O grupo móvel constatou, também, que não havia sanitários, de modo que os trabalhadores eram obrigados a satisfazer suas necessidades fisiológicas ao ar livre. Não havia água filtrada, e a que bebiam vinha de fontes contaminadas. Não havia cozinha nem refeitório. A comida (em geral, feijão com arroz e, em alguns dias, também carne bovina) era preparada em fogareiros improvisados e, durante as refeições, os trabalhadores tinham de sentar-se em pedras, paus ou no chão.
Também conforme o relatório dos auditores-fiscais do trabalho, as compras de alimentos dos trabalhadores e até seu material de trabalho (botas, por exemplo) eram descontadas dos seus salários. Assim, eles ficavam sempre em dívida com o patrão e não tinham condições financeiras de deixar a fazenda para se locomover até seu local de origem.
Defesa
Notificados, o senador e o suposto administrador de sua fazenda apresentaram defesas. O senador alegou que foi interposto recurso administrativo junto à Delegacia Regional do Trabalho (DRT) do Estado do Pará contra o resultado da inspeção e que, em razão disso, sua punibilidade estaria condicionada à decisão administrativa, a exemplo do que ocorre no caso de constituição de débitos fiscais.
Também segundo ele, os empregados ouvidos afirmaram, unanimemente, que não eram proibidos de sair da fazenda; que seu vínculo de trabalho era temporário; que faziam refeições na fazenda sem desconto nas diárias; que o pequeno valor de suas dívidas para com o empregador descaracterizaria a alegação de “servidão por dívida” e que o fato de ser proprietário da fazenda não o vincula criminalmente aos fatos relatados na inicial.
Por seu turno, Osvaldo Brito Filho alegou que o senador o nomeou procurador apenas para comparecer a Araguaína com o fim de efetivar o pagamento das verbas trabalhistas a ele impostas pelos auditores-fiscais do Ministério do Trabalho e que não era administrador da fazenda. Tanto assim que, conforme alega, na época dos fatos, era assessor do governo do estado do Tocantins, sendo apenas amigo do senador João Ribeiro.
Argumentos rejeitados
Endossando argumento da Procuradoria-Geral da República, a relatora do inquérito, ministra Ellen Gracie, recebeu a denúncia. Ela rejeitou as alegações de ambos acusados. Quanto à alegação inicial do senador, ela observou que o prosseguimento da ação penal não precisa aguardar o encerramento do processo administrativo dentro do qual foram impugnados os autos de infração lavrados pelos auditores-fiscais do trabalho.
Trata-se, segundo ela, de instâncias independentes. Assim, deve haver continuidade da ação penal a fim de que, diante das provas já existentes e ao lado das que serão coligidas no curso da instrução, fique devidamente caracterizada a prática dos delitos imputados na denúncia.
Ela rejeitou, também, a pretensão de aplicação do entendimento do STF quanto à necessidade do encerramento do processo administrativo fiscal para ajuizamento de ação penal em razão da prática do delito previsto no artigo 1º da Lei 8.137/90 (crimes contra a ordem tributária).
Segundo a PGR e a ministra Ellen Gracie, a situação, no presente caso, é diversa. Ao opinar pelo recebimento da denúncia, a Procuradoria-Geral da República observou que a discussão empreendida no âmbito administrativo e trabalhista, relativa à impugnação das multas impostas ao senador, “em nada repercutirá na esfera criminal, haja vista que a análise da prática das condutas delituosas imputadas aos denunciados – aliciamento de trabalhadores mediante fraude, redução à condição análoga à de escravo e coação à utilização de mercadorias de determinado estabelecimento, com o fim de impossibilitar o desligamento do serviço em virtude de dívida – será empreendida no bojo da instrução processual, sob o crivo do contraditório e da ampla defesa”.
A ministra rejeitou, também, a alegação de que os trabalhadores seriam temporários. Segundo ela, o próprio senador reconheceu o vínculo trabalhista com os trabalhadores rurais, conforme consta de termos de rescisão de contratos de trabalho e assinatura das respectivas Carteiras de Trabalho e Previdência Social.
Ademais, mesmo que não houvesse o reconhecimento desse vínculo, esse fato não prejudicaria a caracterização dos ilícitos penais imputados na denúncia. “É que o caráter da relação de trabalho ocorrida na Fazenda Ouro Verde, seja através de um vínculo empregatício, seja por meio de trabalho temporário, não dá direito ao denunciado de efetuar o tratamento desumano por ele empreendido às pessoas que naquele local desenvolviam sua atividade laboral“, afirma a Procuradoria-Geral da República, ao recomendar a aceitação da denúncia.
Quanto às alegações de Osvaldo de que não seria administrador da fazenda e, portanto, não teria responsabilidade no caso, a ministra Ellen Gracie disse que depoimentos de diversos trabalhadores aliciados em Araguaína dão conta de que foi ele quem os aliciou. Portanto, há, no entendimento dela, indícios suficientes para incluí-lo na denúncia.
Ao aceitar a denúncia, a ministra entendeu haver indícios suficientes no sentido de que 35 trabalhadores foram submetidos a uma jornada de trabalho exaustiva, condições degradantes e restrição a sua locomoção, além de péssimas condições do alojamento, ausência de remuneração semanal e de assistência médica, além de promessas salariais e benefícios trabalhistas não cumpridos.
Vista
Ao pedir vista do processo, o ministro Gilmar Mendes prometeu trazer o processo de volta a julgamento em prazo curto. Ele justificou o pedido afirmando que, quanto ao crime de aliciamento, lhe parece necessário fazer “uma análise detida do seu significado na ordem jurídica”. Segundo ele, é preciso refletir sobre a possibilidade de consunção, uma vez que a acusação mais grave é de trabalho escravo. Assim, segundo ele, poderia haver uma relação de meio e fim entre ambos – aliciamento e trabalho escravo.
FK/AL
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